terça-feira, 27 de março de 2012

DIREITO E LITERATURA

ENSAIO publicado na revista Santa Rita, onde também sou membro do Conselho Editorial. para ler a revista na integra, clique aqui.

DIREITO E LITERATURA
Prof. Helder de Jesus Dias
Professor da FACEAS
Mestre em Direito
Prof. Paulo Henrique Camargo Rinaldi
Professor da FACEAS
Mestre em Direito

O Direito e a Literatura compõem duas das mais belas e importantes manifestações culturais. No entanto, falar sobre essas duas matérias é tarefa que, à primeira vista, parece impossível. Como conciliar em similaridades, duas manifestações culturais tão aparentemente distantes, seja na linguagem, na maneira de tratar a sociedade ou na proposta de leitura e atuação sociais?
Se entendermos a literatura como toda e qualquer produção escrita, abarcaremos o Direito como subconjunto do grande conjunto literário. Nesse universo, evidentemente, teremos também a produção jornalística, médica, didática, enfim tudo que estiver impresso em forma de comunicação por meio de palavras. O universo literário tornar-se-ia, então, incomensurável, pois praticamente infinito.
De outra forma, se entendermos a literatura como produção poética, isto é, como disse Baudelaire à "arte das palavras", estará dando-lhe um campo de atuação mais claro, definido e significativo. Aqui, entenderíamos por literatura apenas o que é construção artística e que tem por matéria de trabalho essencialmente a palavra. A delimitação é, sem dúvida, fundamental a qualquer campo do estudo, especialmente quando se trata das chamadas ciências sociais e, no caso específico da literatura, é propiciadora de sua razão de ser na sociedade, concretizando sua produção e orientando sua pesquisa e estudo.
O direito, sem dúvida, é resultado das relações humanas, traduzido pela linguagem, muitas vezes escrita em verso e prosa. É possível apontar diversos momentos onde o
direito se traduziu em verdadeira obra literária.
Poder-se-ia também restringir o campo do direito às leis escritas, e quando tratamos de material escrito necessita-se de uma ferramenta única, a mesma utilizada na literatura, qual seja, a linguagem, os signos linguísticos. Nesse caso, o direito tem íntima ligação com a literatura. Contudo, o direito nem sempre está escrito, muitas vezes a regra de direito ocorre na forma tácita, em virtude de uma atitude ou costume, outras vezes o direito surge verbalizado.
Por outro lado, para encontrarmos similaridades, muitas vezes devemos buscar diversidades.
Cabe, em primeiro lugar, examinarmos o uso da linguagem, tanto na literatura quanto no direito. Naquela, as palavras ganham sentido metafórico, impreciso à primeira leitura. No Direito, necessitamos buscar o sentido primeiro, concreto, preciso, pois só assim pode-se tipificar o fato jurídico.
Foi o estudo da língua do ponto de vista científico, ou seja, a linguística, que, dentre suas contribuições, nos trouxe consciência do significado denotativo e conotativo. A denotação é o primeiro sentido de uma palavra, seu significado concreto, de dicionário. A conotação é o segundo sentido de uma palavra, seu significado abstrato.
A linguagem literária se constrói a partir do significado conotativo, pois as palavras, entendidas em sua construção poética, geram sentidos outros que não o de dicionário.
Quando Carlos Drummond de Andrade nos diz em um de seus mais significativos poemas
No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.
As palavras não possuem sentido literal ou denotativo, mas evidentemente conotativo. Os termos pedra e caminho, aqui podem ser interpretados como obstáculo e vida, respectivamente, e, assim, teriam um poema que retrataria a mudança que um obstáculo causa na vida de qualquer pessoa.
O artigo 1285 do Código Civil quando trata do direito de passagem diz em seu caput

O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto pode, mediante pagamento e indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.
Assim, quando um proprietário de imóvel encravado, alega que seu vizinho colocou um obstáculo, como uma pedra, no caminho de passagem de sua propriedade, estará falando de pedra ou obstáculo propriamente ditos e de caminho de fato, em seu sentido primeiro, denotativo, de dicionário. A própria lei está sendo interpretada de maneira denotativa, e isso quer dizer que a interpretação da norma precisa ser o mais próximo possível do sentido real da palavra.
Se na literatura deve prevalecer a linguagem com interpretação conotativa, no direito, deve prevalecer a linguagem com interpretação denotativa.
No que diz respeito aos olhos com que se vê a sociedade, parece-nos que a literatura tem por obrigação buscar o futuro, enquanto o direito, preservar, antes, o presente. Por isso, é traço fundamental da primeira a permanência no tempo e no segundo, a transformação pela adaptação.
A literatura, como arte que se faz com palavras, tem por função conceitual inovar e romper com as formas tradicionais para buscar o novo. Ela é, em sua essência, um elemento da vanguarda social.
Na introdução à 3ª edição de Understanding Media, McLuhan presta tributo ainda uma vez a Ezra Pound, através da alusão a um dos motivos-chave do ABC da Literatura: ‘Os artistas são as antenas da raça’. Diz MacLuhan: ‘O poder das artes de antecipar, de uma ou mais gerações, os futuros desenvolvimentos sociais e técnicos foi reconhecido há muito tempo. Ezra Pound chamou o artista de ‘antenas da raça’. A arte, como o radar, atua como se fosse um verdadeiro ‘sistema de alarma premonitório, capacitando-nos a descobrir e a enfrentar objetivos sociais e psíquicos, com grande antecedência. Artistas. Antenas.
Dúvida não resta acerca do papel e da importância da literatura. Está na vanguarda, no rompimento com as formas e as normas tradicionais. Não é à toa que muitos artistas, como inovadores não conseguem reconhecimento em sua época, cabendo a futuras gerações a fruição do "biscoito fino" que produziram. 
Ao direito não resta papel social menor. Pelo contrário, é ele que mantém as expectativas da sociedade, apaziguando conflitos e respondendo, assim, às demandas da sociedade. Sua matéria é a vida presente, os homens presentes.
Sem dúvida é daí que vem o dinamismo do direito, sempre repensando seus valores, princípios e normas, buscando renovar-se a partir da evolução do fato social e da busca de justiça pelos homens. O direito é, enfim, dinâmico, como dinâmica é a sociedade e suas relações interpessoais.
Finalmente, podemos apontar mais uma diversidade entre o direito e a literatura. Conseqüência direta desta última: a perenidade. A Lei tem prazo de validade (material ou tácito), o que faz o direito ser transitório. Uma velha lei que já não vigore, quase nenhum valor possui, apenas histórico para o conhecimento da mentalidade e dos valores de sua época.
Já a obra literária tem como fundamento a permanência, é o novo que permanece sempre novo. A obra literária, mesmo que seja ultrapassada por conceitos temporais, continua com seu valor literário intacto enquanto expressão de arte. A perenidade da arte contesta a razão do ser humano, valendo até a admiração por obras escritas através de símbolos, como os das escritas mais antigas da humanidade.
Em uma os olhos voltados para o futuro; em outro para o presente. Nos dois, papel e atuação sociais que se completam e se complementam, mas não se confundem.
Muitos têm buscado encontrar a similitude entre o Direito e a Literatura, mas, salvo melhor juízo, são manifestações culturais diversas. Talvez aí esteja o ponto de convergência.
O clássico escritor Honoré de Balzac ao final de sua obra O Coronel Chabert nos traz um impressionante e delicioso texto. O Dr. Derville, o advogado, faz uma reflexão acerca da arte de advogar:
Sabe, meu caro – continuou Derville, depois de uma pausa -, que há em nossa sociedade três homens, o Padre, o Médico, e o Homem da justiça, que não podem estimar o mundo? Usam trajes negros, talvez porque levem luto por todas as virtudes, por todas as ilusões. O mais infeliz de todos é o advogado. Quando o homem vem à procura de um padre, chega trazido pelo arrependimento, pelo remorso, pelas crenças que o tornam interessante, que o engrandecem, e consolam a alma do medianeiro, cuja tarefa não deixa de ter algo de prazeroso; ele purifica, repara e concilia. Mas nós advogados, vemos repetirem-se os mesmos sentimentos maus, nada os corrige, nossos escritórios são como esgotos que não podemos limpar. Quanta coisa aprendi, exercendo minha profissão! Vi morrer um pai, num celeiro, sem níquel, pelas duas filhas, às quais dera quarenta mil libras de renda! Vi queimarem testamentos. Vi mães despojando seus filhos, maridos roubando as esposas, mulheres matando os maridos, servindo-se do amor que lhes inspiravam para torná-los loucos ou imbecis, a fim de viverem em paz com um amante. Vi mulheres incutindo a um filho do primeiro leito os gostos que deviam arrastá-lo à morte, só para enriquecer o filho do amor. Não posso dizer tudo quanto vi, porque vi crimes contra os quais a justiça é impotente. Enfim todos os horrores que os romancistas acreditam inventar estão sempre aquém da verdade. (Balzac, Honoré de, O Coronel Chabert, trad. Nair Lacerda, editora Saraiva, 2006, São Paulo)
"Todos os horrores que os romancistas acreditam inventar estão sempre aquém da verdade", O texto de Balzac evidencia pontos comuns entre Direito e Literatura. As duas matérias têm como sujeito a condição humana, ou seja, a busca por dar efetividade à dignidade do homem. Em segundo, a arma de que ambos dispõem é a palavra.
As duas grandes armas do advogado são o conhecimento jurídico e o domínio da língua. Quanto maior a capacidade de percorrer as estruturas destes dois universos, maior a chance de sucesso nas empreitadas que se lhe surgirem. Na mesma medida, é o trabalho com as palavras que constrói o texto literário. É o penetrar fundo nas estruturas, formas e conteúdos da língua que eterniza o gênero artístico.
O Lutador
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Ínsito, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
(Carlos Drummond de Andrade)
Direito e Literatura, como dois grandes signos, dotados de significante e significado encontram a mais forte congruência no conteúdo, ou seja, no trato da existência e da dignidade humanas.
Assim, cada um a sua maneira tratam e buscam a existência humana, cada um a seu modo e método, mas ambos se encontram na alma e na busca da dignidade humanas.
Sabemos que a dignidade humana é um princípio com surgimento no início do cristianismo, que buscou a valorização do homem independente de qualquer elemento discriminatório. Em primeiro lugar, Cristo apontou a salvação como algo pessoal, particular, a partir da crença de cada um, colocando de lado fatores como sexo, origem ou posição social. Nos dois mandamentos nos quais Cristo resumiu a doutrina cristã, encontramos o engrandecimento e a valorização do homem como pessoa e a solidariedade e fraternidade para com o outro. Princípio este ratificado por Paulo:


Nisto não há judeu, nem grego; não há servo, nem livre; não há macho, nem fêmea; porque todos vós sois um em Jesus Cristo (Carta de São Paulo aos Gálatas). (BARCELLOS, 2008, p. 121).
Mas o conceito base para dignidade humana nos vem do Iluminismo, mais propriamente de Immanuel Kant em sua obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Ingo Wolfgang Sarlet em sua obra Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988 nos traz Kant e o princípio da dignidade humana de forma bastante clara.
Construindo sua concepção a partir da natureza racional do ser humano, Kant sinala que a autonomia da vontade, entendida como a faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo-se no fundamento da dignidade humana. Com base nesta premissa, Kant sustenta que ‘o Homem e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito)’. Ainda segundo Kant, afirmando a qualidade peculiar e insubstituível da pessoa humana, ‘no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma pessoa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. Esta apreciação dá pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade.
É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva – nacional e alienígena – ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana (SARLET, 2008, p. 34-35).
A ideia que nos resta está em que a dignidade humana consiste em a pessoa ser sempre um fim em si mesmo, jamais meio para se atingir algum fim. O princípio de que o ser humano deve ser a finalidade de tudo e não meio para se atingir algum objetivo.
O ser humano tem seu fim em si mesmo, não podendo ser instrumento de coisa alguma. Coisas possuem preço, têm uma finalidade, podem ser trocadas ou substituídas. Já a pessoa tem dignidade e, porque cada pessoa é um ser único e insubstituível, não pode ser trocado por nada, pois tem valor absoluto e fim em si mesmo. Não é, portanto, admissível a reificação ou a coisificação do ser humano.
Em suma, quer dizer que só o ser humano, o ser racional, é
pessoa. Todo ser humano, sem distinção, é pessoa, mais ainda, é um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores. Consciência e vivência de si próprio, todo ser humano se reproduz no outro como seu correspondente e reflexo de sua espiritualidade, razão por que desconsiderar uma pessoa significa, em última análise, desconsiderar a si próprio.
Por isso é que a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar seu desenvolvimento. Nisso já se manifesta a idéia de dignidade de um ser racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo, ao mesmo tempo, institui, no dizer de Kant. (SILVA, 1995, p. 145/146).
Ao fim da 2ª Grande Guerra, a humanidade se viu horrorizada com o que a barbárie humana é capaz de realizar. Assim, não apenas uma Europa arrasada ao fim da 1ª Guerra, mas principalmente o horror dos campos de concentração do nazismo associados à idéia de que o extermínio de seres humanos podia constituir uma política de governo é algo que por sua inadmissibilidade choca a qualquer ser humano.
Mais, em meio ao despropositado, a humanidade parecia ter perdido a noção do valor, da dignidade e do respeito à vida e ao próximo (BARCELLOS, 2008, p. 125). Exemplos não são poucos e vão desde os campos de concentração da Alemanha nazista e o estupro das mulheres alemãs pelos soldados do exército vermelho até as duas bombas atômicas lançadas sobre o Japão. A Segunda Guerra fez mais de 50 milhões de vítimas que somados aos 9 milhões da Primeira Guerra tornam as guerras mundiais do século XX as maiores catástrofes da história da humanidade.
O resultado, em oposição antitética, foi, por um lado, a incorporação do princípio da dignidade humana à ordem interna constitucional dos Estados e, por outro, passou a ser visto como elemento orientador dos organismos internacionais.
Assim foi que em 24 de outubro de 1945, logo após a segunda Grande Guerra, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), que tem como objetivos a manutenção da paz mundial, a proteção dos direitos humanos, a promoção e o desenvolvimento econômico e social das nações, o estímulo à autonomia dos povos dependentes e o reforço dos laços entre todos os Estados soberanos.
Em 10 de dezembro de 1948, a ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde são delineados os direitos humanos básicos. Embora não possua caráter obrigatório, a Declaração dos Direitos Humanos, além de servir como base para tratados internacionais como o Tratado Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Tratado Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, é continuamente utilizada nas questões de direito, tanto internas aos Estados como nas relações internacionais.
Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU – 1948): Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
No que diz respeito à incorporação do princípio da dignidade humana às Constituições de Estado, vejamos a lição de José Afonso da Silva:
Foi a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha que por primeiro erigiu a dignidade da pessoa humana em direito fundamental, expressamente estabelecido no seu art. 1º, n. 1, declarando: "A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os poderes estatais". Fundamentou a positivação constitucional desse princípio de base filosófica, o fato de o Estado nazista ter vulnerado gravemente a dignidade da pessoa humana mediante a prática de horrorosos crimes políticos sob a invocação de razões de Estado e outras razões.
Os mesmos motivos históricos justificaram a declaração do art. 1º da Constituição portuguesa, segundo o qual "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária"; e também a Constituição espanhola, cujo art. 10, n. 1, estatui que "a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social". E assim também a tortura e toda sorte de desrespeito à pessoa humana praticados sob o regime militar levaram o Constituinte brasileiro a incluir a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito em que constitui a República Federativa do Brasil, conforme disposto no insico III do art. 1º da Constituição de 1988. (SILVA, 1995, p. 144/145).

Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:
[...]
III – a dignidade da pessoa humana.
É fundamental frisar, como vimos, que o princípio da dignidade humana não é algo que advenha ou se restrinja ao campo do direito, mas reveste-se de universalidade que deve ser sujeito e princípio de toda manifestação humana. Representa muito mais que uma norma jurídica, pois se faz presente na pessoa, na própria natureza do ser humano, racional, criador de normas de comportamento, dotado de autonomia e, portanto, capaz de determinar seus destinos. Cabe ao direito apenas o reconhecimento da dignidade humana, que passa, então, como princípio, a nortear a construção da ciência do direito e do direito em sua ação cotidiana.
É o que nos ensina José Afonso da Silva:
A dignidade humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição reconhecendo a sua existência e a sua eminência, transforma-a num valor supremo da ordem jurídica (SILVA, 1995, p. 146).
Para tanto, é necessário considerar o ser humano como um todo, não apenas em seu aspecto racional, mas também em seu aspecto sentimental, ou seja, como um ser que pensa e que também se emociona, capaz do amor, do ódio e da indignação. É preciso considerar a pessoa em sua condição espiritual e animal, com vontades, autonomia e desejos. Cada ser humano é único e insubstituível.
A dignidade humana também está presente em toda obra literária, uma vez que a literatura, como manifestação cultural, deve partir da essência do ser humano, ou poderíamos afirmar, da dignidade humana, até aqui defendida pelos fatos e fundamentos jurídicos.
Fabiano é personagem da obra
Vidas Secas da autoria de Graciliano Ramos e Macabéia é a personagem em torno da qual gira o romance A Hora da Estrela de Clarice Lispector. No primeiro, uma obra modernista colocada dentre as que compõem o chamado Regionalismo de 1930. Em Hora da Estrela, obra também modernista, mas da geração de 1945, a 3ª fase ou o Pós-Modernismo. Como traço comum entre estas personagens e, por isso, apontadas como exemplo, o vazio existencial. Fabiano e sua família, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia, só fazem fugir da seca e tentar sobreviver. Ele não consegue ter emoções, sentimentos e menos ainda raciocínio. Equipara-se a um animal. "Sente-se tão diminuído e marginalizado que constantemente se equipara a animais: e ‘quase uma rês’ ou ainda ‘tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia’" (CASTRO, Dácio Antônio de. Literatura para Vestibulares. São Paulo: Anglo, 1996).
Macabéia, também uma retirante, migra do Nordeste para o Rio de Janeiro. Em seu vazio existencial passa pela vida completamente alienada. Nada sabe e nada percebe. Ao final do romance, quando atravessa uma rua, é atropelada por um carro Mercedes-Bens. Neste momento, finalmente se vê como ser humano, dono de vontade própria e dignidade, mas morre em seguida.
Não é possível retirar da literatura seu sentido principal: o de explorar o ser humano e buscar-lhe na dignidade humana um caminho de expressão, inclusive para a perpetuação dos versos que o poeta escreve. A escrita como arma, se única e isolada, não garante à arte literária que sua validade seja duradoura. Mas os sentimentos da pessoa
humana são valores indefectíveis, que se perpetuam no tempo e no espaço.
Vejamos outro exemplo onde o artista se utiliza da dignidade humana como tema de sua obra, no caso, ressalte-se, a ausência dela:
VI ONTEM um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
("O Bicho" - Manoel Bandeira em seu livro Bel Belo – 1948)
Assim, por diversas vezes a poesia encontra o ser humano, e é, na verdade, uma das razões principais que leva o escritor a fazer das palavras sua arte. Muitas vezes para traduzir um sentimento que invade a alma do autor, como transparece noutro poema de Bandeira:
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
Eu faço versos como quem morre.
Citação – poema Desencanto
Distantes no trabalho cotidiano de cada um, Direito e Literatura exatamente por serem antagônicos se encontram. Se um se constrói pela linguagem denotativa e pela solução dos conflitos do tempo presente e outro pelo texto conotativo e pela construção do tempo futuro, dúvida não há que se complementam.
O direito não conseguirá a aplicação real de seus princípios e normas se não houver uma mentalidade social, ou seja, se o inconsciente coletivo que reclame exigentemente a sua efetividade. Não podemos, enfim criar uma sociedade em que a realidade se deteriore dia a dia como um quadro escondido em um fétido sótão para parecermos sempre belos e vivendo em um falso Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
(VEJA NO PERIÓDICO ORIGINAL)

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